Ódio

Jesus deixou claro aos discípulos que não veio para revogar a Lei ou os Profetas, veio para cumprir (Mt 5.17). A palavra revogar significa chamar de volta, anular os efeitos, cancelar. Mas, não foi isso que Jesus veio fazer. Pelo contrário, ele veio cumprir, ou seja, encher, dar pleno sentido ao que dizia a Lei. Como um novo Moisés ele censura as interpretações errôneas que os religiosos faziam e fazem sobre a Lei, mostrando o verdadeiro sentido dela com um aprofundamento maior.

21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento. 22 Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo. 23 Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta. 25 Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão. 26 Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo. (Mateus 5.21-26).

O sexto mandamento diz: “Não matarás” (Êx 20.13), que significa “não cometerás homicídio”, e não o não matar em qualquer circunstância como acontecia na pena de morte e nas guerras justas que mostravam o valor da vida humana e não o contrário: “Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem” (Gn 9.6). Além disso, não podemos ignorar que Deus deu ao Estado o direito e a responsabilidade de punir os malfeitores (Rm 13.1-7).

Jesus fala do sexto mandamento para corrigir distorções feitas pelos escribas e fariseus que restringiam o mandamento ao homicídio. Quem não matasse alguém estava obedecendo ao mandamento, diziam, mesmo que o coração fosse uma sepultura de pessoas mortas pela ira. Jesus ensinou que “não matarás”, além do homicídio, inclui, iras, insultos, sentimentos, palavras, pensamentos, desprezos, indiferenças, ações.

A expressão “aquele que [sem motivo] se irar” mostra que há lugar para a ira. Jesus ficou indignado e condoído ao curar um homem (Mc 3.1-6), expulsou do templo com um azorrague de cordas vendedores de animais, “derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou mesas” (Jo 2.13-16). Deus sente indignação todos os dias (Sl 7.11). Uma pessoa incapaz de se irar pode ser perigosa, pode ser um psicopata. Jesus não está falando contra a ira sadia, mas contra a ira pecaminosa, a antipatia gratuita, o ódio.

“Irai-vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira, nem deis lugar ao diabo” (Ef 4.26-27). Assim como existe o bom e o mau colesterol, existe a ira não pecaminosa que pode evoluir gerando material ao diabo que construirá nossa prisão psicológica. “Sabeis estas coisas, meus amados irmãos. Todo homem, pois, seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar” (Tg 1.19). Quem se ira fácil, facilmente peca e se torna vulnerável aos aprisionamentos existenciais que nos fazem tanto mal.

Jesus falou contra a ira, o insulto e o desprezo que nulifica o nosso irmão. Isso pode acontecer dentro de casa entre cônjuges, pais e filhos, e irmãos; na igreja, onde a fraternidade e a gentileza podem ser apenas aparentes quando o ódio dentro do coração é um verdadeiro assassinato; pode acontecer no trabalho, na escola, na vizinhança, enfim, pode se dá até contra pessoas que encontramos na rua. Quando isso acontece, a ira pode ser uma maneira de reprovar no outro o que não aceitamos em nós mesmos. A ira pode ter várias faces, desde a ira não pecaminosa até aquele nível mais maléfico. Condenar alguém ao inferno pode levar quem assim procede ao inferno.

Talvez não percebamos a gravidade de nossos insultos iracundos e nossas palavras desprezíveis porque pensamos que se tratam apenas de palavras e não de algo tão grave como um homicídio. Mas, para Deus tais expressões e sentimentos equivalem ao próprio homicídio. “Todo aquele que odeia a seu irmão é assassino” (1Jo 3.15). A ira, o ódio, e o insulto, carregam juntos muitas vezes o desejo de matar uma pessoa. A maioria de nós diz que não tem coragem de matar ninguém, mas, quem nunca pensou ou já disse: “Tomara que morra”. Essas palavras carregadas de ira contra alguém é assassinato e torna tal pessoa sujeita a julgamento diante do tribunal de Deus.

A palavra usada para insulto também pode significar cuspo, ou aquele som emitido quando alguém escarra. A ira e o ódio contra alguém é como cuspir esse alguém para fora e para longe de nós. Isso é muito forte porque facilmente nos enganamos entre nossos sentimentos e nosso comportamento. Jesus está dizendo que não é como agimos e sim como sentimos ou pensamos que mais importa. Nossa conduta pode parecer gentil e amorosa enquanto dentro de nós existe ódio contra a pessoa que tratamos “bem”.

Jesus disse que a ira e o insulto contra o irmão nos sujeita a julgamento do tribunal. Ele poderia estar falando do tribunal humano e do tribunal divino. Alguém pode ser denunciado por calúnia, difamação e falso testemunho num tribunal humano, mas apenas Deus pode julgar alguém por causa da ira e condenar alguém ao inferno de fogo. Os rabinos falavam apenas contra o homicídio e sobre o julgamento humano. Jesus foi além e disse que não devemos jamais odiar, insultar, desprezar e nulificar ninguém.

Jesus concluiu o assunto da ira e do insulto apresentando duas ilustrações que sugerem rapidez e precaução para se fugir deles. Ele usa o contexto do templo e do tribunal onde poderiam acontecer conflitos e a busca de soluções entre irmãos e inimigos. Ele começou falando para a coletividade dos discípulos, mas termina falando pessoalmente para cada um, porque essa é uma questão muito pessoal, a questão da ira; é algo íntimo que requer sinceridade e transparência se queremos de fato viver em paz e exceder a justiça das aparências fazendo sempre a vontade de Deus.

No primeiro caso, Jesus diz que meu culto a Deus, ofertas, devoção e piedade nada significam enquanto há pessoas feridas por causa da minha ira e meus insultos. Devo primeiro me reconciliar com o irmão para depois oferecer um culto agradável a Deus. No segundo caso, devo também me apressar em fazer acordo com o meu adversário enquanto tenho oportunidade mesmo que seja a caminho do tribunal. A ira mantida no coração nos conduz a prisões psicológicas terríveis. Devemos tomar todas as medidas possíveis para rapidamente superarmos a ira dentro de nós em relação aos outros. Assim fazendo evitamos o homicídio diante de Deus e viveremos em paz com as pessoas.

Antonio Francisco - Cuiabá, 10 de fevereiro de 2013 – Voltar para A vida extraordinária.

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